A doença da moda e a moda das doenças…

Sempre foi uma criança igual a todas as outras: sempre pronta a correr, saltar e brincar, sempre doce e simpática, sempre feliz e esperta. Todos a achavam demasiado bonita e demasiado normal para poder ter algum problema.
Apenas os pais insistiam que era, também, demasiado irrequieta… 
Era sem dúvida uma menina educada (o que ouviam vezes sem conta da parte de quem lhes era próximo, como que a insistir no seu exagero)... mas só eles sabiam a persistência que esta filha lhes exigia. A mãe tinha abdicado da sua ocupação profissional para a acompanhar, já que acreditava que a sua atenção e disponibilidade era o que de melhor lhe poderia oferecer. Sentia-se realizada a desempenhar quase em exclusivo este papel, e dedicava-lhe toda a sua energia. Mas rapidamente começou a pensar quão exigente esta tarefa podia ser… Desde os poucos meses de vida que a filha dormia muito pouco e os pais não se lembravam da última vez que tinham dormido uma noite completa. Apesar de ser uma menina robusta e saudável, as horas das refeições eram os momentos mais adiados pelos pais, que começavam a antecipar, horas antes, a sucessão de “senta-te…“vira-te para a frente…come…” que sempre tinham que repetir… 

Aos 3 anos começou a frequentar o Jardim de Infância e pouco tardou até que a Educadora começasse a referir a mesma irrequietude de que os pais falavam. Mas mais uma vez todos insistiam que era “demasiado educada” para poder ter algum problema…
Com o acompanhamento atento da Educadora foi cumprindo todos os objetivos que lhe eram colocados: apesar de atabalhoados e a correr, ia conseguindo fazer os desenhos e símbolos que lhe eram pedidos; apesar de parecer no mundo da lua ia aprendendo as cores, as formas e o mundo; apesar de poucos colegas a conseguirem acompanhar, continuava a procurá-los e a brincar com eles. E acima de tudo continuava a ser a menina doce e simpática, feliz e esperta que os pais conheciam.

Com a entrada para a escola a turma cresceu e as mãos da nova professora deixaram de ser suficientes para a acompanhar. Não era possível os trabalhos serem feitos com a educadora, não eram possível os pais repetirem a sequência “senta-te…vira-te para a frente” habitual, e não era possível continuar a passar o dia a correr, saltar e brincar.
Rapidamente mudou, e rapidamente os pais o notaram. 
O seu sorriso deu lugar às lágrimas: porque os colegas não queriam brincar consigo, porque a professora passava o dia zangada, porque não queria sentar-se para fazer os trabalhos de casa em vez de ir brincar…
A mãe começou a ser chamada à escola, e aqueles que insistiam que era uma menina educada deram lugar àqueles que garantiam que os pais não a sabiam educar: era incorreta com os colegas, (zangava-se, explodia e batia), recusava-se a fazer os trabalhos, falava alto e perturbava a aula. 
E deixou de ser a menina doce e simpática, feliz e esperta que os pais conheciam.


Esta é a história da Maria de 8 anos. Quando foi vista pela primeira vez mostrava sintomas depressivos evidentes (estava sempre triste e irritada, chorava por tudo e por nada, explodia facilmente e batia em todos; demorava muito tempo a adormecer e acordava várias vezes de noite…) além de ser contada pelos pais uma história de desenvolvimento francamente sugestiva da presença duma Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA).

Tal como todas as entidades patológicas, a PHDA representa um impacto significativo no dia-a-dia do doente (seja ele criança, adolescente ou adulto). Nem sempre de fácil estabelecimento diagnóstico e muitas vezes pouco percetível para as pessoas próximas do doente, passa por vezes despercebida durante vários anos. 
Com altas taxas de morbilidade e sendo uma das patologias mais prevalentes em idade pediátrica, a PHDA tem vindo a ser considerada um pouco por todo o mundo um importante problema de saúde pública. Perturbações depressivas, de ansiedade, tiques, dificuldades de aprendizagem sustentadas entre outras circunstâncias clínicas representam alguns dos quadros muito frequentemente observadas nestes indivíduos, e são estas que representam frequentemente o motivo para procura de acompanhamento médico.
A frequência, o teor, e a disseminação de notícias visando este diagnóstico e respetivo tratamento têm vindo a representar uma verdadeira campanha de desinformação relativa às mesmas, representando frequentemente um obstáculo (algumas vezes intransponível) à procura de acompanhamento, avaliação, diagnóstico e intervenção nestas situações.
Numa era em que em Portugal se possibilitam cuidados de saúde abrangentes e de grande qualidade à população, a PHDA constitui um fenómeno único, já que se trata duma patologia com tratamento eficaz e infrequente contra-indicação.
Conhecida como a doença da moda, e abordada frequentemente como falta de motivação, preguiça, ou até falta de regras ou educação, a PHDA constitui talvez o diagnóstico mais banalizado no momento, o que, longe de proteger os doentes, os torna mais vulneráveis aos efeitos da mesma e respetivas consequências.

Vale a pena parar, avaliar e pesar as consequências da doença versus as consequências do tratamento, porque no fundo, cuidar de familiares, assim como cuidar de doentes, é disto que se trata.

 

Autor, Catarina Esteves Ferreira | Pedopsiquiatra

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